“A sociedade brasileira adotou o mau humor como sua nova característica”

Essa é a conclusão de Miguel Lucena Filho, que exerceu o cargo de delegado de Polícia do Distrito Federal por 24 anos

Entre 1999 e 2023, o delegado Miguel Lucena Filho assumiu a chefia de delegacias circunscricionais e especializadas e a Direção do Departamento de Assuntos Estratégicos e da Divisão de Comunicação da PCDF. Foi também subsecretário de Segurança Pública, presidente da Companhia de Planejamento (Codeplan) e coordenador de Análise de Informações da Casa Civil do Governo do DF. Especialista em Inteligência Estratégica, ele faz uma análise sobre o momento de polarização ideológica vivido no Brasil desde 2018, que culminou no 8 de janeiro do ano passado, quando as sedes dos Três Poderes da República foram invadidas e depredadas. Confira aqui os principais trechos da entrevista à revista Plano B.

A sociedade brasileira mudou?

A sociedade brasileira adotou o mau humor como sua nova característica, seja pelas restrições do politicamente correto, seja pela sisudez dos militantes de certo espectro político. Sigmund Freud falava do mal-estar decorrente das proibições impostas pela sociedade, por meio das leis e do costume. Muita gente cumpre as normas contrariada. Acrescente-se a isso o mal-estar criado de propósito, por meio de notícias falsas e profecias do caos.

Criaram a ilusão de que os problemas da sociedade se acabariam com a eleição de Bolsonaro e a derrota de Lula e da esquerda, enquanto Bolsonaro, vendo o tamanho do abacaxi que tinha anos mãos, passou quatro anos conspirando para ganhar apoio das Forças Armadas e governar sem amarras, freios e contrapesos.

Muita gente embarcou nessa?

Pessoas mais radicalizadas e até fanatizadas compraram as versões de terra arrasada, de que uma possível vitória da esquerda transformaria o Brasil numa Venezuela, e partiram para acampar na frente dos quarteis, clamando por intervenção militar, absorvendo as notícias falsas de decretação de Garantia da Lei e da Ordem, o famoso art. 142 da Constituição Federal, estado de sítio e outros remédios amargos, intervenção militar com Bolsonaro à frente e outras mentiras espalhadas propositadamente por grupos organizados.

Esse estado de espírito forjado culminou em quebra-quebra, depredação das Polícias Federal e Civil do Distrito Federal, no final de 2022, e invasão das sedes dos poderes da República, no dia 8 de janeiro de 2023, com depredação e achincalhe, com o objetivo de impedir primeiro a diplomação e depois a posse de Lula.

Muitos foram presos. E o que houve com quem incentivou as ações?

O mais curioso é que quem espalhou as mentiras e enganou o povo não estava no momento da invasão. É uma militância organizada que continua nas redes e grupos diversos, com as mesmas desinformações e teorias conspiratórias. Eles espalham de tudo, desde aberrações e perversões atribuídas aos adversários a coisas pequenas que vão tirando o crédito do que eles chamam de sistema.

Como isso é feito?

Convencem pessoas predispostas a não assistirem certos canais de televisão, nem lerem a maioria dos jornais, prendem-nas em seus grupos fantasiosos e instituem correntes de informações falsas, com certa aparência de verdade para não afrontar os menos desavisados.

Subiu o preço de tudo, o desemprego aumentou, a peste gay assolou, seres humanos estão casando com bichos, ninguém pode sair de casa com tanta violência, a granola está vindo com menos castanhas, o fim do mundo está próximo, como se nada disso existisse antes, não fossem registrados 60 mil homicídios por ano e 40 mil mortes no trânsito, antes e depois de Bolsonaro, que é assim que contam o tempo agora, como se fosse antes e depois de Cristo.

Alguns chegaram a dizer que as enchentes do Rio Grande do Sul foram provocadas pelo PT ou são castigo de Deus pelo fato de o governador gaúcho ser casado com outro homem.

Perigo comunista e polarização ficarão a nos rondar até quando?

Para quem esperava mais 20 anos de regime militar, para eliminar de vez o perigo comunista, os dias não estão sendo fáceis. E o pior é que não conseguem pensar em outra coisa, como se a vida se resumisse a esse confronto ideológico entre direita e esquerda.

Há vida além desse embate. A maioria dos brasileiros continua lutando para criar os filhos e botar comida na mesa. Quem fica repetindo que A ou B sempre tem razão não conhece bem a história, porque esse slogan era dito pelos adeptos de Mussolini na Itália.

O que mais me choca é a hipocrisia. Pessoas que já foram presas por corrupção, desvios diversos e até tráfico de drogas abrem a boca para chamar os adversários de ladrões. É o cinismo em ação.

A polarização ideológica alterou a indignação de parte da sociedade?

A indignação no Brasil sempre é seletiva. Existe uma música dos anos 90, cantada pelo comediante Tiririca, que perdoava os defeitos dos amigos. “Ele é isso e aquilo, mas é meu amigo”, cantava Tiririca, que depois virou político.

O ladrão está do outro lado, é assim que raciocina a maioria das pessoas. Aí você olha para o palanque daquela pessoa e só vê santo. É uma esquizofrenia. Isso acontece no meio policial. O ladrão comum não pode dar as caras. Já o colarinho branco…

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