Epidemia instalada no país inteiro, os jogos de apostas invadem, agora, as salas de aula do Distrito Federal. Atraídos pela promessa de alcançar dinheiro de forma fácil, adolescentes e jovens têm usado o espaço — e horários — de estudo para arriscar valores em plataformas on-line. Ao Correio, a secretária de Estado de Educação do DF (SEEDF), Hélvia Paranaguá, declarou preocupação com o cenário. A pasta iniciou, na sexta-feira, ações para que a prática seja interrompida o quanto antes. A reportagem esteve nas redondezas de duas escolas para abordar os alunos sobre as bets. Tanto na rede pública quanto na privada, os relatos são os mesmos: as apostas esportivas e os jogos on-line têm sido a principal fonte de diversão de muitos estudantes.
Para a segurança dos entrevistados, usaremos nomes fictícios na identificação. Estudante da rede pública, Camila, 17 anos, cursa o 2° ano do ensino médio. Segundo ela, as apostas acontecem desde o final do ano passado, independentemente das aulas estarem ocorrendo ou não. A adolescente explicou que quem joga costuma convidar os outros colegas, e que isso ocorre principalmente porque as plataformas prometem mais lucros àqueles que captam novos usuários. “Os pais não sabem das bets. Aqui (na escola) é proibido o uso do celular e também dos jogos, então tudo acontece escondido”, confidenciou.
De acordo com Alessandra Araújo, psicóloga especialista em atendimento clínico de adolescentes e adultos, as bets são mesmo um motivo para preocupação. “Como estão em fase de desenvolvimento, eles (crianças e adolescentes) são mais vulneráveis a comportamentos impulsivos e podem acabar desenvolvendo vícios. As apostas oferecem recompensas rápidas que estimulam o prazer imediato, mas podem criar um ciclo de compulsão, afastando os jovens de atividades importantes como os estudos e relações sociais”, apontou.
Dentre os efeitos negativos que a especialista cita estão a frustração, a baixa autoestima, a ansiedade e os sintomas de depressão. “As apostas podem normalizar comportamentos de risco, levando os jovens a encarar atividades perigosas como algo comum. Isso pode abrir espaço para outros problemas, como uso de substâncias ou impulsividade”, reforçou Alessandra.
Desde que virou moda, a mídia tem alertado sobre os riscos de apostar. Apesar disso, há quem desconsidere os fatores comprovados. Samuel tem 18 anos, cursa o 2° ano do ensino médio e confessou, com tranquilidade, que joga desde o início do ano, por influência da própria mãe. “Realmente funciona, a gente já ganhou muito dinheiro. Minha mãe joga todos os dias”, confessou. “Geralmente a gente perde cerca de R$ 100 a R$ 150 em cada rodada”, informou ele, que trabalha como jovem aprendiz no contraturno escolar e usa o dinheiro nas apostas.
O relato de Samuel dá sentido à teoria apontada pela secretária de Educação. Segundo Hélvia, o governo obteve a informação de que há estudantes utilizando de benefícios, como o Pé-de-Meia — em que estudantes do ensino médio recebem, ao comprovar matrícula e frequência, o pagamento mensal de R$ 200, que pode ser sacado em qualquer momento — para apostar nos jogos. “Nós estamos preocupadíssimos porque os alunos têm acesso à poupança e estão aplicando esse dinheiro nos joguinhos”, relatou.
Segundo diretora do Sindicato dos Professores no DF (Sinpro-DF) Márcia Gilda, a demanda ainda não foi recebida pela associação, mas reforçou que a entidade “sempre se posicionará contra tudo aquilo que compromete o processo pedagógico, além de buscar o debate com a sociedade.”
Problema generalizado
Na rede privada de ensino, o Correio conversou com alunos acompanhados pelos pais. Mariana, 15 anos, estudante do 9° ano, contou que sempre escuta os meninos compartilharem que ganharam grandes quantias, mas, ao mesmo tempo, se lamentando após perderem. O pai demonstrou surpresa ao escutar o relato. Confidenciou não saber que o problema ocorre na escola da filha.
Luiza, 16, também é estudante do 9° ano e disse que quem aposta costuma jogar em grupo e competir sobre quem lucra mais. “Já houve brigas entre alunos que estavam jogando e perderam dinheiro. Os professores costumam advertir e, agora, estão sendo mais rigorosos quanto ao uso do celular.” O pai de Luiza disse que, em casa, monitora o uso do celular e alerta para que a adolescente não se deixe levar pelas propagandas dos jogos. As alunas contaram que, para apostar, os estudantes usam o dinheiro que os pais dão para comprar lanche.
O diretor jurídico do Sindicato dos Professores em Estabelecimentos Particulares de Ensino no DF (Sinproep-DF), Rodrigo de Paula, apontou que a preocupação ocorre principalmente em relação ao vício. “Nós temos trabalhado a educação financeira em várias escolas e acredito que, após a divulgação da quantidade de pessoas que estão apostando nessas plataformas, o tema receberá um olhar diferenciado.”
A Associação de Pais e Alunos das Instituições de Ensino do Distrito Federal (ASPA-DF) declarou aflição, por meio de nota, e enfatizou que o sistema educacional precisa regular o uso do celular no ambiente escolar. “É fundamental que haja uma diretriz clara e unificada para toda a rede de ensino, a fim de garantir que os dispositivos não se tornem um canal de distrações ou piora na qualidade da aprendizagem dos alunos.”
Patologia
Segundo Lucas Benevides, médico psiquiatra e professor de medicina no Centro Universitário de Brasília (Uniceub), o vício em bets pode ser considerado uma patologia, categorizado como um transtorno de jogo, reconhecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5). Quando avançado, o vício exige tratamento. “Os cuidados podem incluir combinação de terapias psicológicas, suporte de grupos de ajuda e, em alguns casos, medicação. A terapia cognitivo-comportamental é comumente usada para ajudar o indivíduo a modificar pensamentos e comportamentos relacionados ao jogo, aprender a gerenciar impulsos, e lidar com problemas associados ao vício; Em casos específicos, medicamentos podem ser prescritos para tratar problemas subjacentes que podem contribuir para o vício, como depressão ou transtornos do espectro bipolar”, explicou o especialista.
Aos responsáveis, Amanda Andrade, psicóloga do Grupo Mantevida, sinalizou que estabelecer um relacionamento de confiança com os filhos é essencial para abrir diálogos sobre comportamentos de risco, tanto à saúde mental quanto financeira. “Os sinais podem variar de acordo com o padrão comportamental de cada criança ou adolescente. É importante observar mudanças repentinas em comparação ao comportamento normal.”
Educar para tratar
Pra o economista Newton Marques, a educação financeira deve ser pensada como uma das principais bases a resolver o problema. “As mídias atraem porque mostram que há uma chance de se ter ganho fácil e, por ‘deseducação financeira’, os jovens passam a questionar a necessidade de estudar, uma vez que podem ficar ricos a partir daquilo.” O especialista ressaltou, porém, que o trabalho deve ser estendido aos pais. “Não adianta ensinar aos alunos na escola se em casa os pais não vão entender. Eu costumo dizer que esse é um trabalho de formiguinha, que leva tempo.”, completou.
A secretária de Educação afirmou que a matéria faz parte da grade curricular dos estudantes do DF há, pelo menos, cinco anos. “Nós temos uma parceria de educação financeira com o Banco Central (BC); isso é trabalhado com os alunos a partir da escola classe, que são os anos iniciais. Os alunos têm consciência plena do que é educação financeira”, apontou Hélvia Paranaguá.
A psicóloga Amanda Andrade destacou que ações educativas nas escolas desempenham um papel essencial. “Devemos entender que o celular, jogos e as redes sociais fazem parte do crescimento do adolescente. Não existem só lados negativos. Em vez de proibir o uso de celulares e videogames, é necessário educar para que desenvolvam um relacionamento equilibrado com a tecnologia, sabendo controlar o tempo e o uso dessas ferramentas sem prejudicar o desenvolvimento pessoal e acadêmico”, relatou.
Ações da SEEDF
Na sexta-feira, pela manhã, a secretária de Educação reuniu-se com os 14 coordenadores das regionais de ensino do DF para debater o tema. À reportagem, Hélvia Paranaguá disse que orientará os professores a seguirem rigorosamente a Lei 4131/2008, que proíbe o uso de celulares e de outros aparelhos eletrônicos em salas de aula de escolas públicas e privadas do DF.
“O vício nesses jogos interfere na aprendizagem e retira dos alunos a capacidade de socialização. Nós vamos precisar trabalhar isso junto ao Consed (Conselho Nacional de Secretários da Educação), porque a gente precisa debater o que deve ser feito para que isso seja impedido”, declarou.
Hélvia disse que a preocupação será apresentada ao governador Ibaneis Rocha (MDB) e que, se necessário, bloqueadores de celulares poderão ser instalados nas escolas. “Nós vamos fazer um trabalho junto aos pais para que entendam que não há necessidade de levar o celular à escola. Será um trabalho com a comunidade escolar, gestores e famílias”, finalizou.