RICARDO COUTINHO
Tomei hoje, dia 3 de abril, a primeira dose de uma das vacinas contra a Covid-19.
Compartilho, fraternalmente, com todos, o sentimento que experimentei. Não senti nenhuma felicidade ou euforia. Não fiz declarações para a história. Na verdade, senti uma profunda tristeza. Pensei como tinha sido possível o Brasil ter chegado a esse ponto: centenas de milhares de mortos pela Covid e um Presidente que, dia sim, outro também, tem coragem de zombar das pessoas, da ciência e da inteligência coletiva.
Triste com um País que relativizou a morte e o sofrimento do povo. Lembrei de tantos e tantos dias, ao longo desta pandemia, em que permanecíamos estupefatos diante do aumento do número de mortes, e a cada momento mais pessoas conhecidas morriam, enquanto um Presidente tosco, ignorante, um acidente desastroso de nossa história política, ridiculariza e sabota tudo que se propõe para combate o vírus com eficácia.
Sem dúvidas, Bolsonaro tem sido doentiamente incansável em manter o cenário mais apropriado para a disseminação do vírus. Não podemos naturalizar centenas de milhares de mortes. E, pior, tudo indica que estamos longe do fim dessa carnificina.
Por isso, me senti triste. Por amplas parcelas de nosso povo que se deixaram envolver pelo falso e covarde dilema VIDA X ECONOMIA. Como se pudesse haver economia ativa com uma mortande dessas dimensões; como se os articuladores desse discurso trágico não pudessem cobrar dos que comandam o Estado brasileiro soluções de cobertura social como um Auxilio Emergencial que assegure às pessoas mais vulneráveis o direito de se proteger da pandemia, sem precisar enfrentar todos os dias o risco de morrer em busca de trabalho; em geral, precário e sub-remunerado. Por que, também, não exigir linhas de crédito facilitadas e ágeis, para garantir a sobrevivências das empresas, principalmente, das pequenas, as que mais empregam em nosso país?
O Mundo todo, incluindo o Mundo neoliberal, está fazendo isso. Os EUA anunciaram um pacote de mais de 5 trilhões de dólares para cobertura social e para investimentos na economia, a fim de garantir e gerar empregos. Nossas elites sociais e econômicas, além de cegas e insensíveis, em geral, são perversas, em sua alienação individualista e preconceituosa.
Antes, mesmo, de a Covid começar a matar aceleradamente, o governo federal já “socorria” os bancos – sempre os bancos – com 1,2 trilhões de reais. Contudo, não tem vergonha na cara e na alma de pagar, a fórcepes, um Auxílio Emergencial de apenas 200 reais, duas notas de cem, POR MÊS. Nossas elites não aceitam nem discutir quem deve pagar a conta dessa pandemia. É cada um por si, desde que não cometam o sacrilégio de vir com ideias “comunistas” de taxação de grandes fortunas e de lucros e dividendos, aliás, como TODO o mundo faz, com exceção do Brasil e da Estônia.
Como fiquei com vergonha da vergonha que muitos estão tendo por terem preferido, não um civilizado Professor da USP, mas um aventureiro ignorante que, entre outras barbaridades, ofereceu à consciência e à expectativa das pessoas “arminhas” com as mãos; seu racismo, sua misoginia e homofobia, todas explícitas, alem da confissão cínica de que não entendia de economia ou de qualquer outra política pública.
Esse irresponsável não escondeu, em momento algum, quem ele era. Não tinha a menor chance de dar certo. Só que conseguiu ser muito pior do que a minha imaginação poderia atingir. A economia parada desde antes da Covid, a pandemia se instalando com a contribuição indiscutível e sistemática das ações e omissões de um Presidente acidental que, como um inconsequente autoritário e teimoso, trabalha, na prática, para disseminar o vírus.
Junte-se a essa tragédia social a covardia e a incapacidade técnica da maior parte dos políticos tradicionais e dos acidentais. Alguém já parou para perceber os isolamentos de araque feitos por gestores aqui na Paraíba? E o que dizer do silêncio constrangedor da grande maioria dos deputados federais e senadores sobre a Covid? O que eles calam? Omitem-se para não desagradar o Presidente descontrolado, que, mesmo assim, pode atrapalhar seus interesses fisiológicos por cargos e recursos públicos ?
Na verdade, uma pandemia não pode ser enfrentada por governantes que pensam primeiro no voto e depois em vidas. Agem covardemente, se escondendo de suas responsabilidades, com medo de desagradar amigos influentes ou quem possa formar opinião em épocas em que a razão nem sempre prevalece. Governantes que produzem decretos de isolamento em forma de papel, mas que não têm o menor compromisso de cumprir, liderar, comandar. Governantes despreparados que pensam que pandemia se vence com um leito a mais num hospital ao invés de agir, fortemente, na Atenção Primária à Saúde, buscando reduzir o nível de transmissão e aumentando os cuidados com as pessoas nas suas comunidades.
Enfim, é muito triste constatar como estamos carentes na política, na administração pública.
Naquele momento, em que eu parecia um privilegiado em função da idade ao receber uma suada primeira dose, não consegui me sentir feliz. Lembrei de que, em qualquer governo anterior, qualquer um, seja dos generais, de Sarney, Collor, Itamar, FHC, e principalmente de Lula e Dilma, em nenhum deles, o Brasil estaria passando por essa situação de não termos vacina para imunização em massa e urgente, como a situação exige. Este governo incapaz e anacrônico nos tornou párias da civilização. Esse presidente desqualificado conseguiu deixar o Brasil à sua imagem e semelhança. Esse grave acidente de percurso da história civilizacional brasileira ainda vai produzir muitas marcas dolorosas em nosso povo e em nossa existência como Nação.
Além de dizer essas verdades que talvez incomodem uma parcela da nossa gente, agora, felizmente, cada vez menor; nunca me esquecerei de que, ao ver a gentil enfermeira mostrar a seringa vazia, após injetar em meu braço a vacina desenvolvida na China e produzida no Instituto Butantã, me veio à consciência uma mesma certeza, só que agora bem definitiva: Basta de Bolsonaro e de outros que pensam como ele, mas se escondem atrás de sua covardia, de sua mediocridade, de seu cinismo.
A tarefa de devolver o Brasil aos caminhos de civilidade, respeito à vida e compromisso com o futuro para toda uma Nação é para já, é para agora e sempre. O povo brasileiro não merece tudo isso que está acontecendo. E não me refiro ao vírus, mas ao genocídio, à brutalidade, à ignorância, às maldades e violências políticas, institucionais, econômicas, civilizatórias.