Marcos Rogério Lopes, do R7
Para muitas pessoas, é preciso ver cenas de brasileiros buscando comida em um caminhão de lixo, como ocorreu nesta semana em Fortaleza (CE), para entenderem que fome não é uma sensação rara e passageira para boa parte da população do país, mas uma realidade constante que se tornou ainda mais usual com a pandemia de Covid-19.
Há nomes e rostos por trás dos números altos do desemprego, com 14,1 milhões de brasileiros e brasileiras que não têm mais renda e precisam pagar contas e comprar comida, e isso em um país no qual a inflação elevou em 10,25% os preços nos últimos doze meses.
“A pandemia não trouxe a fome, mas intensificou a desigualdade. Sim, antes havia quem buscasse comida nos restos jogados fora, mas hoje existem mais pessoas nessa situação. Infelizmente, teremos mais episódios de pobres revirando lixo”, disse o economista Marcelo Neri, diretor da FGV Social.
Neri conta que, desde o fim de 2019 até a metade de 2021, a renda média dos 50% mais pobres caiu 21,5%. Ao mesmo tempo, os 10% que ganham os melhores salários tiveram uma redução de 7%. “Gente que já não tinha boa condição de vida antes da Covid viu os empregos desaparecerem ou passou a receber muito pouco em seus serviços. Isso leva a cenas horríveis como essas”, afirmou o economista.
No Rio de Janeiro, moradores buscavam restos de carne em ossos jogados no lixo, em Santa Catarina homens e mulheres compram partes de animais que antes não teriam mais serventia. No centro de São Paulo, pessoas fazem fila para pegar restos de comida.
O diretor da FGV Social cita um estudo feito pela entidade que analisou dados de 40 países para dizer que esse impulso na desigualdade ocorreu apenas no Brasil durante a pandemia. “Em todos os outros locais houve o contrário, foi observada uma ligeira aproximação entre a renda de pobres e ricos, enquanto aqui o distanciamento aumentou.”
Marcelo Neri afirma que para entender o agravamento da pobreza é preciso ir além da análise de grandes números, como o PIB (Produto Interno Bruto). “O que adianta o país produzir mais se, lá em baixo, muita gente perdeu tudo e não tem como sobreviver?”
Ele comenta que as verbas do SUAS (Sistema Único de Assistência Social) vêm caindo ano a ano, o que deixa ainda desamparada com serviços básicos a camada da população que se encontra em extrema pobreza. “Não basta ter um auxílio emergencial ou um Bolsa Família, também é preciso entregar alimentos, garantir saúde e educação a quem não tem como desembolsar nem sequer o custo do transporte”, argumenta.
“O Brasil tinha saído do mapa da fome há alguns anos e o nível de desemprego nunca foi tão alto”, lamenta o presidente do Instituto Locomotiva, Renato Meirelles, que também é professor de Ciências do Consumo e Opinião Pública do Ibmec.
Meirelles diz que o auxílio emergencial dado pelo governo federal durante a pandemia de Covid-19 atenuou a miséria, mas não teve a capacidade de evitá-la.
“Como seu próprio nome diz, era uma ajuda emergencial. Programas como o que o goveno deve anunciar, como o Auxílio Brasil, que tem bases próximas do Bolsa Família e visa estimular a educação, tendem a ter resultados mais profundos e duradouros”, analisou.
O presidente do Instituto Locomotiva acrescenta que a inflação superior a 10% ao ano tornou itens como carne artigos de luxo inacessíveis a boa parte dos brasileiros. “Hoje falta proteína no prato, e a situação deve piorar ainda mais, afinal os trabalhos estão cada vez mais precários, os preços não param de subir e o país tem dificuldade para atrair investimentos estrangeiros.”
Com fome, a última coisa que as pessoas pensam é na dignidade, diz o presidente da Cruz Vermelha Brasileira, Júlio Cals. “Com o agravamento da fome e da insegurança alimentar pelo país, potencializado pela pandemia, vemos todos os dias inúmeras circunstâncias em que a população busca pelo básico. As pessoas estão tendo que lutar pelo mínimo de qualidade de vida.”
Cals defende políticas públicas que pensem em efeitos também a médio e longo prazo. “É preciso alavancar a educação, gerar oportunidades de trabalho e amparar os grupos vulneráveis, mas é necessário também que a sociedade como um todo colabore para ajudar o próximo, se colocando à disposição.”
Ele afirma que o trabalho realizado pelo terceiro setor é imprescindível em um momento como o atual, porque os governos, sozinhos, não conseguem resolver todos os problemas.
A Cruz Vermelha distribui o próprio auxílio emergencial com um cartão-benefício de em média R$ 400 a centenas de famílias vulneráveis pelo Brasil e conta com 31 mil voluntários, que têm como função propiciar ajuda humanitária aos que mais necessitam.
André Gontijo, professor de Direitos Humanos do Ceub e Unieuro, centros universitários de Brasília (DF), teme que se a política econômica mantiver como única aposta os grandes números da economia, como PIB e quantidade de vagas de emprego criadas, sem o estímulo à educação, cenas de extrema pobreza como as que recentemente viralizaram nas redes sociais serão corriqueiras.
“A miséria está mais aparente porque passamos a prestar mais atenção nisso. Ao mesmo tempo, a situação da economia do país piorou, projetando esse drama de forma inédita.”
Para o professor, “conjugar assistência social com capacitação é receita de sucesso em toda a história e em vários países”.
“Hoje a tecnologia permite a educação a distância e é possível dar ferramentas para as pessoas com menos condições entrarem no mercado de trabalho. Sem isso, vai ser difícil recolocá-las.”
Segundo ele, a crise econômica atual aumentou a desigualdade e nos deixou mais preocupados com a situação de toda a comunidade. “Se algo ruim acontece, todo mundo se sente afetado. E isso é bom para a sociedade”, opinou Gontijo.
“A fome já acontecia, mas hoje ela nos afeta de modo diferente. Ninguém consegue mais ignorar o que está acontecendo com os miseráveis de nosso país. É essencial cobrar políticas públicas que revertam a situação degradante de tantos brasileiros.”