Representantes do governo federal não escondem a apreensão de que haja mal-estar entre os presidentes brasileiro e argentino por discordarem sobre impor aos bilionários uma contribuição voltada para o combate às desigualdades
Rio de Janeiro — Prestes a iniciar a Cúpula do G20, os negociadores finalizam os detalhes das principais propostas da presidência brasileira à frente do grupo: o lançamento da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza e a proposta de taxação dos super-ricos. Esse último tema, porém, tem tudo para ser motivo de um mal-estar que colocará Brasil e Argentina em polos opostos. Enquanto o presidente Luiz Inácio Lula da Silva pretende fazer uma defesa enfática de que os bilionários contribuam de forma mais efetiva para a igualdade social, o líder argentino Javier Milei deve se manifestar veemente e agressivamente contra a proposta.
Fontes do governo anteveem o embate e não escondem a apreensão. Um representante do Ministério da Fazenda entende a mudança de posição argentina como “uma linha vermelha” cruzada pelo país vizinho e confirmou a postura beligerante da delegação enviada ao Rio por Buenos Aires. Integrantes do Ministério das Relações Exteriores também disseram que há dificuldades de convencimento dos enviados de Milei.
Resistências
Flagrado ao telefone num intervalo da reunião final de negociadores, Federico Pinedo, ex-senador e interlocutor diplomático da Argentina, se negou a comentar quais são as objeções levantadas pelo seu governo. A reportagem perguntou a ele se procedia a informação de que haviam se insurgido contra a taxação dos super-ricos, vazada da reunião a portas fechadas.
“Somos sérios. Se há outros que não são, lamento. A negociação não terminou. Até que termine, não vamos falar nada”, disse o representante argentino.
Historicamente, sempre que um texto é consensuado com ministros da Fazenda e presidentes de autoridades monetárias (os bancos centrais e congêneres), o conteúdo discutido é incorporado à declaração final com ajustes apenas no tom do documento. No entanto, há uma possibilidade de que isso não seja obedecido nesta edição do G20.
Liderada pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, a trilha de finanças chegou, em julho passado, ao consenso de dois comunicados finais — fato que não ocorria há três anos. Um foi a taxação internacional sobre indivíduos super-ricos, considerada como uma inovação, pois, até então, falava-se apenas sobre tributar empresas. O outro tratou do alinhamento dos bancos de desenvolvimento com as questões sociais — como desigualdade, mudanças climáticas, fome, pobreza. Nesse ponto, foi tratada a questão dos países endividados e como as dívidas poderiam ser transformadas em investimentos para desenvolvê-los.
Os negociadores têm até o fim da reunião de líderes para definir o que será inserido na declaração final. Apesar de diplomaticamente serem incomuns recuos em acordos consensuados, a posição da Argentina na COP29, no Azerbaijão, indica problemas. No evento sobre mudança climática, a delegação de Buenos Aires recebeu ordens para retornar pouco depois de desembarcar.
Se incluída na declaração final, a taxação dos super-ricos poderá financiar um fundo para manter a floresta amazônica de pé (o Tropical Forest Finance Facility) e também investir na Aliança Global contra a Fome e a Pobreza. Em adiantamento de algumas ações do compromisso que será lançado na abertura do G20, o ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Wellington Dias, comentou a respeito da possibilidade de auxílio financeiro.
“Do ponto de vista internacional, a questão financeira [da Aliança Global] ficou acertada de ser tratada em um evento específico, em 2025, na Espanha. Será tratado sobre política tributária, dívidas e fundos. Temos na coordenação disso o ministro Fernando Haddad, que tem dialogado com vários países. Não é uma proposta [de taxar os super-ricos] de consenso. É preciso reconhecer, porém, que é positivo sair algum indicativo de trabalhar com a tributação progressiva de recursos voltada para o combate à fome e à pobreza, e para mitigar os efeitos das mudanças climáticas”, salientou.
Pendência
Informações extraoficiais também indicam que a Argentina ainda não aderiu ao projeto de Aliança Global contra a Fome e a Pobreza. Segundo negociadores que participam da reunião, os enviados argentinos também voltaram a expor resistências aos assuntos de clima e costumes — como questões de gênero —, embora um embaixador pondere que Buenos Aires tem interesse no financiamento climático, por causa da expectativa de também receber recursos.
Milei confirmou presença no G20. Ele deve discursar duas vezes, a portas fechadas, diante dos demais presidentes e de primeiros-ministros. Escolheu falar sobre fome, pobreza e reforma da governança global, mas não sobre Clima. Segundo um secretário do Itamaraty, cada líder vai discursar duas vezes na cúpula. Apenas o anfitrião Lula poderá falar na abertura de cada sessão de debates.
Fome: questão política
Na cerimônia de encerramento do G20 Social, Lula recebeu um documento com as principais reivindicações dos movimentos sociais para serem levadas à Cúpula do G20, que ocorre amanhã e terça-feira, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, no Aterro do Flamengo. O documento tinha como uma das principais causas a taxação dos super-ricos para ter “justiça social” e investir o montante em políticas sociais, ambientais e culturais.
“Eu dizia que a gente só ia conseguir acabar com a fome quando ela se transformasse em assunto político. Enquanto ela for apenas um assunto social, não será tratada com respeito. É preciso assumir responsabilidade e é isso que vou tentar fazer, ao entregar esse documento aos países que estão aqui”, prometeu Lula.
O presidente reforçou a mesma mensagem ao participar do encerramento do Festival Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, à noite, na Praça Mauá, na Zona Portuária carioca. “Quando nós decidimos colocar a questão da fome para ser discutida no G20, foi porque queríamos transformá- la numa questão política. Enquanto é tratada como questão social, é apenas um número estatístico que as pessoas utilizam na eleição e depois esquecem”, enfatizou.
Lula reuniu-se ontem com o Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres; com a prefeita de Paris, Anne Hidalgo; e com o presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Ilan Goldfajn. Ao todo, o presidente realizará cerca de 20 bilaterais até o fim do G20. O encontro com Milei foi desmentido pela Presidência da República. As reuniões mais esperados são as agendadas com Joe Biden (Estados Unidos) e Xi Jinping (China).
O norte-americano desembarca hoje no Brasil e passará por Manaus para conhecer a Amazônia antes de chegar ao Rio de Janeiro — o encontro com Lula deve ser na terça-feira. Xi Jinping também chega hoje ao Rio, mas se reúne com o presidente brasileiro, em Brasília, na quarta-feira. (com Agência Estado)