BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Enquanto ex-chefes e até técnicos com destaque na gestão bolsonarista foram exonerados ou são vetados para compor as novas equipes nos ministérios do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), servidores da Receita Federal estranham a permanência de alguns colegas que são vistos como apoiadores ideológicos da gestão anterior.
Alguns atribuem essa situação ao fato de o novo secretário da Receita, Robinson Barreirinhas, procurador de carreira da Prefeitura de São Paulo, ser novo no órgão e não ter tido tempo de se informar com profundidade sobre o histórico da instituição e da equipe. Ele foi anunciado para o cargo em 22 de dezembro pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT).
A Receita Federal foi um dos órgãos que sofreu intervenção política e corte de recursos durante governo de Jair Bolsonaro (PL). A expectativa interna é alta em relação à nova gestão do PT. O estado de ânimo em relação a servidores associados ao bolsonarismo ficou pior após o vandalismo às sedes dos três Poderes.
Por isso, causa estranhamento, por exemplo, a permanência de Juliano Neves no posto de subsecretário de Gestão Corporativa, enquanto outros subsecretários foram sumariamente exonerados já no dia 1º de janeiro de 2023, assim que Lula foi empossado.
Neves é funcionário de carreira e já tinha cargo de confiança dentro da Receita na gestão da ex-presidente Dilma Rousseff (PT).
No início de 2019, ele chefiava a Cotec (Coordenadoria-Geral de Tecnologia e Segurança da Informação) e foi envolvido nas apurações dentro da Receita para tentar livrar o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), filho do ex-presidente, do processo que investiga suspeita de “rachadinha” com os salários de funcionários de seu gabinete quando ainda era deputado estadual pelo Rio de Janeiro.
A investigação contra o senador foi aberta em 2018, com base em dados do Coaf (órgão federal de inteligência financeira). Em 2020, os advogados de defesa do senador alegaram que as informações do Coaf tinham sido coletadas ilegalmente por servidores da Receita no Rio.
A busca de dados fiscais de contribuintes não pode ocorrer de forma indiscriminada, e o servidor é punido se fizer um acesso sem justificativa. Invalidar a coleta de dados na Receita tornou-se estratégico naquele momento para a defesa de Flávio.
Documentos obtidos pela Folha por Lei de Acesso à Informação mostraram que Neves deflagrou uma devassa para identificar os colegas que teriam reunido as informações não só sobre o senador, mas também sobre o então presidente, seus dois outros filhos políticos, duas de suas ex-mulheres, a primeira-dama Michelle Bolsonaro e Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio e suposto operador do esquema.
A ação de Neves ocorreu logo depois de os advogados do senador colocarem em xeque a origem das informações do Coaf e de o próprio senador Flávio Bolsonaro enviar uma petição à Receita sobre o caso, em agosto de 2020.
No documento, o senador pediu “com a máxima urgência” para que o órgão identificasse “nome, CPF, qualificação e unidade de exercício/lotação” de auditores da Receita que, segundo ele, desde 2015 acessavam seus dados fiscais, de sua mulher, Fernanda, e de empresas a eles relacionadas.
O senador quis que a averiguação fosse realizada diretamente pelo Serpro (Serviço Federal de Processamento de Dados), a empresa estatal que presta serviços e fornece sistemas à Receita. Esse pedido específico de apuração via Serpro foi formalmente negado.
No entanto, segundo reportagem da Folha de S.Paulo, baseada em documentos da Receita, Neves pediu ao Serpro uma apuração especial sobre quem teria acessado dados fiscais de Bolsonaro e pessoas próximas a ele.
O levantamento solicitado por Neves identificou os “logs”, como são chamados os arquivos sobre as consultas aos sistemas da Receita. Eles trazem a data e o nome do auditor responsável pela consulta.
Em maio de 2022, o caso das rachadinhas foi arquivado após diferentes decisões na Justiça em favor do senador. No mesmo ano, a corregedoria da Receita divulgou que não havia encontrado indícios de irregularidades na coleta das informações que haviam sido repassadas ao Coaf.
Após a devassa, Neves foi promovido ao posto que ocupa até hoje, já no governo Lula.
Entre colegas, há relatos de que o atual subsecretário é um técnico sério, que já comprou brigas importantes em defesa da instituição. Sua participação na devassa, no entanto, divide opiniões até hoje.
Alguns servidores entendem que ele não teve alternativa. Dizem que é um profissional que vai até onde pode na tentativa de convencer seus superiores quando não concorda com alguma orientação, mas, se não conseguir dissuadir a chefia, acata a decisão e cumpre a ordem por ser fiel a seus superiores.
Outros, no entanto, acreditam que no caso da devassa ele teve uma atuação ideológica, tanto que foi promovido na sequência. Com sua atitude, Neves teria ajudado o governo anterior no processo que alguns chamam de desmonte da Receita Federal e dos seus princípios, pois participou de uma interferência no órgão.
Fontes ligadas ao comando do órgão, por sua vez, veem uma tentativa de desgastar Neves, que tem como uma de suas atribuições no cargo lidar com demandas da corporação.
No ano passado, os auditores realizaram forte mobilização pela regulamentação do bônus de eficiência criado para a categoria. A medida ampliaria os valores pagos aos funcionários, mas depende de um decreto presidencial. Havia expectativa de que o comando do Fisco conseguisse destravar a edição do ato, o que não ocorreu.
Interlocutores próximos à cúpula afirmam que as negociações entre o subsecretário e a categoria por vezes geraram atritos e que Neves é visto como um servidor de perfil técnico, não havendo, até o momento, nada de concreto que o desabone.
A permanência do subsecretário também é associada à maior interação com a nova equipe econômica durante o período da transição. Esse seria o motivo pelo qual Neves foi poupado da ampla exoneração de servidores que ocupavam cargos de chefia no governo federal durante a administração Bolsonaro.
Outro colega associado à gestão bolsonarista que chama a atenção entre servidores do órgão é Luiz Fernando Nunes.
A reportagem fez contato com Neves e com Nunes, que não responderam até a publicação desse texto. Em nota, a assessoria do órgão disse que não comentaria os casos.
Até o final de 2019, Nunes era subsecretário de Tributação e Contencioso. Atualmente, é assessor técnico na mesma área. Os servidores da Receita estranharam quando o nome dele passou a ser ventilado para o posto de novo corregedor da Receita, pois há quem acredite que ele não poderia permanecer nem no cargo atual, que é de coordenação de área.
Fontes ligadas ao comando, por sua vez, afirmam que o novo secretário Robinson Barreirinhas não conhece Nunes, nem teve contato com o servidor.
Nunes é muito ativo nas redes sociais, especialmente em um grupo de auditores fiscais com mais de 2.000 integrantes. Nesse espaço já promoveu Bolsonaro, questionou as finanças de Lula e a moral da esquerda. Também fez postagens contra a urna eletrônica. Algumas dessas mensagens foram coletadas por participantes do grupo e repassadas à reportagem.
Em maio de 2022 publicou a mensagem: “Não é bem desconfiar das urnas eletrônicas mas por que só Brasil, Banglasdesh e Butão utilizam esse meio? Por que EUA, Canadá, Inglaterra, França, Alemanha, Itália e Japão mantêm, até hoje, o voto em cédula?”.
Em agosto, ele postou outra na mesma linha: “Não entendi então o sistema não é mais inviolável ?!?!, anexando uma reportagem intitulada “TSE monta estratégia anti-hacker após alerta de ataques nas eleições”.
Também tratou de temas ligados a gênero, raça e opções políticas. Sobre o desaparecimento do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, cujos assassinatos foram confirmados depois da localização dos corpos, Nunes escreveu:
“Todo dia pessoas somem. Algumas são encontradas mortas e outras simplesmente desaparecem para sempre, sem explicações. Por que tanto celeuma com um indigenista e um jornalista? eles são melhores do que os outros?”
Outra postagem dizia: “Em um BBB com ampla diversidade participaram mulheres, negros, pobres, gays, trans a vitória foi de um homem branco, hétero, rico, que traiu a mulher com 16 amantes. Para desespero de Anitta e outros da turma da lacração.”
Algumas pessoas que já conviveram com Nunes afirmam que ele “tem posições fortes”, mas “não muda conforme o vento” e costuma defender posições de Estado. Outras admitem que ele tem um histórico de críticas entre servidores do órgão.
Quem questiona a permanência desses colegas na Receita afirma que não está promovendo caça às bruxas ou desrespeitando a liberdade de expressão, mas pensando na preservação dos princípios da organização.
A missão institucional da Receita, lembram esses interlocutores, é “exercer a administração tributária e aduaneira com justiça fiscal e respeito ao cidadão, em benefício da sociedade”, o que significa não ceder a ingerências do governo da vez e trabalhar para preservar as instituições de Estado, respeitado às diferenças sociais e políticas dos contribuintes.
ALEXA SALOMÃO E IDIANA TOMAZELLI