Lagosta, bacalhau e foie gras na cesta básica? A polêmica proposta de isentar de impostos itens de luxo


Agronegócio e supermercados são contra cesta básica restrita a “arroz com feijão” – (crédito: Agência Brasil)

Os alimentos que devem compor a nova cesta básica nacional — e, portanto, serão menos tributados — viraram motivo de intensa disputa no Congresso Nacional.

Uma das polêmicas é a possibilidade de garantir impostos menores até mesmo para itens considerados de luxo — o que, segundo críticos da proposta, beneficiaria principalmente pessoas de maior renda.

Uma nova composição da cesta vai ser definida dentro da regulamentação da reforma tributária que deve ser enviada pelo governo federal ao Congresso nesta semana.

Serão estabelecidos quais produtos terão isenção total da nova taxa proposta pela reforma e quais terão desconto de 60%.

A Associação Brasileira de Supermercados (Abras) virou alvo de controvérsia no início de abril após divulgar uma longa lista de itens que considera “elegíveis” para essa nova lista da cesta básica.

O documento incluía uma proposta que previa na regulamentação desconto integral de impostos para itens como lagosta, foie gras, ostras, bacalhau e queijos do tipo azul, como o roquefort.

Já itens como caviar e champanhe teriam, no documento da Abras, desconto de 60% no novo imposto da reforma tributária.

Outro ponto controverso é a inclusão ou não dos chamados ultraprocessados — alimentos que passam por um processamento industrial mais intenso e costumam ter excesso de aditivos químicos, gordura, açúcar e sódio em sua composição, com impactos negativos na saúde.

Esse grupo inclui itens baratos, com forte presença na mesa dos brasileiros, como salsicha e margarina.

A discussão é importante porque a composição da cesta básica impacta a alimentação e o bolso do consumidor, os interesses da indústria de alimentos e supermercados e a arrecadação dos governos municipais, estaduais e federal.

A reforma foi aprovada no ano passado e prevê a unificação de cinco tributos que incidem hoje sobre consumo, sendo três federais (PIS, Cofins e IPI), um estadual (ICMS) e um municipal (ISS).

Após um período de transição, eles darão lugar a um Imposto sobre Valor Agregado (IVA), modelo usado na maioria dos países do mundo e que tem como uma de suas vantagens evitar a tributação em cascata ao longo da cadeira produtiva.

A alíquota do IVA ainda não foi definida, mas a ideia é que ela mantenha a carga tributária sobre consumo no patamar atual, podendo chegar a 27,5%, segundo estimativas iniciais do governo.

Itens isentos não terão qualquer incidência dessa taxa caso ela fique, por exemplo, em 27%, enquanto aqueles com desconto teriam alíquota de 10,8%.

A expectativa é que o governo encaminhe sua proposta para a cesta básica nesta semana no pacote de regulamentação da reforma.

Os próprios parlamentares têm também apresentado sugestões.

O que pode mudar na cesta básica
Hoje, não existe uma cesta básica unificada nacionalmente.

O que ocorre é que alguns itens têm isenção ou desconto dos impostos federais, e Estados também costumam desonerar localmente alguns produtos (que podem ser os mesmos ou diferentes daqueles da cesta federal).

Apesar do adjetivo “básica”, essas cestas já têm hoje uma composição ampla, que inclui diferentes tipos de carnes, peixes, verduras, legumes e produtos processados.

Até mesmo itens que têm gerado polêmica no debate atual já recebem algum desconto nos impostos federais, como lagosta, foie gras e trufas.

Sua inclusão na nova cesta, porém, poderia ampliar a desoneração sobre esses produtos, ressalta o ex-auditor da Receita Federal Eduardo Fleury, sócio da área tributária do escritório FCR Law.

Na sua visão, o fato de itens de luxo terem desconto em impostos hoje não é motivo para estarem na nova cesta básica.

“A reforma foi feita para corrigir estas barbaridades”, defende Fleury, autor de estudos sobre o tema para o Banco Mundial.

Ele nota que, mesmo que alguns alimentos mais caros tenham descontos em impostos federais, eles podem hoje ser tributados nos Estados. Dessa forma, dar isenção total na nova cesta seria reduzir mais os tributos.

Na sua avaliação, isso pode nem chegar ao bolso dos consumidores, porque o desconto fiscal tende a ser incorporado na margem de lucro das empresas.

“O grande problema disso [aumentar a desoneração] é você repassar isso ao preço. A gente sabe que isso não é repassado”, afirma.

Defensor de uma cesta básica ampla, o presidente da Abras, João Galassi, rebate o argumento dizendo que o setor é competitivo.

Na sua visão, a concorrência entre os supermercados obriga as empresas a repassarem eventuais reduções de impostos.

“A lista da CBNA [Cesta Básica Nacional de Alimentos] será ampla de modo a conter abrangente diversidade alimentar e, sobretudo, não discriminar contra este ou aquele tipo ou categoria de alimento, ou como sendo, então, uma comida ou bebida ‘de ricos’ ou ‘de pobres’ (discriminação grave, mas frequentemente mencionada)”, diz trecho do documento da associação.

À BBC News Brasil, Galassi diz que a lista foi mal-interpretada, por falha da associação na sua divulgação.

Ele ressalta que a reforma tributária aprovada no ano passado pelo Congresso inseriu na Constituição uma definição ampla para a nova cesta, estabelecendo que sua composição “considerará a diversidade regional e cultural da alimentação do país e garantirá a alimentação saudável e nutricionalmente adequada”.

Dessa forma, diz Galassi, o setor pretendia, no documento divulgado, destacar os itens que seriam “elegíveis”, segundo esses novos critérios, para “apoiar o trabalho do Congresso”.

E afirmou que a Abras ainda está fechando uma lista a ser proposta em parceria com o deputado Luiz Gastão (PSD-CE), presidente da Federação do Comércio do Ceará.

“É uma discussão técnica, não é uma discussão populista. Ninguém pode negar que lagosta é saudável e nutritiva, e isso é o texto constitucional. Então, desculpa, muda o texto constitucional”, disse.

Em meio às críticas, porém, ele diz não apoiar a inclusão de itens mais caros.

“[O que foi divulgado] É um estudo para ser utilizado pelo Congresso. Eu, João Galassi, não colocaria lagosta, não colocaria trufa, não colocaria caviar. Eu não colocaria porque eu acho que são iguarias desnecessárias”, disse ele à reportagem.

Por outro lado, o presidente da Abras defende que itens como filé mignon e picanha entrem na nova cesta básica.

“Não vamos abrir mão desse debate. A reforma tributária foi vendida como uma forma de simplificar o sistema. Agora nós vamos pegar um boi, e cada hora que passar no caixa cada pedaço vai ter um imposto. Não faz nenhum sentido e vai gerar sonegação”, argumenta, sugerindo que partes mais nobres poderiam ser vendidas de forma fraudulenta como carnes de segunda, para driblar a diferença de imposto.

Devolução de impostos: justiça tributária ou populismo?
Um argumento de quem defende uma lista ampla para a cesta básica é que reduzir o número de itens contemplados em relação à composição atual poderia aumentar o custo da alimentação no país.

Eduardo Fleury reconhece que, a depender dos alimentos que receberão ou não desconto do IVA, alguns podem de fato ficar mais caros.

Por isso, ele defende que a redução da lista venha acompanhada do cashback (devolução de impostos) para os consumidores de menor renda.

Esse programa existe em alguns países como Uruguai, Colômbia e Canadá e foi adotado de forma pioneira no Brasil pelo Rio Grande do Sul em 2021.

“Caviar tem que entrar na alíquota cheia [do IVA] até por uma questão moral. Alguns vão argumentar: ‘Ah, mas e se o pobre quiser comer caviar?’. Ele vai lá, compra e recebe o imposto de volta”, argumenta Fleury.

Defensores de uma lista mais enxuta dizem que isso permitiria ao governo arrecadar mais impostos de pessoas com maior renda, ampliando a devolução aos mais pobres.

Assim, argumentam, a reforma tributária sobre consumo serviria também como forma de distribuição de renda.

Essa ideia tem sido defendida pelo secretário extraordinário da reforma tributária do Ministério da Fazenda, Bernard Appy.

Segundo estimativa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a atual desoneração de itens da cesta básica pelo governo federal reduziu, em média, o preço dos produtos em 5% e custou R$ 34,7 bilhões em perda de arrecadação para o governo federal em 2023.

Esse valor equivalia a cerca de um quinto do gasto no mesmo ano com o Bolsa Família (R$ 175,7 bilhões).

Os cálculos da pesquisadora Ana Luiza Barbosa indicam ainda que, em termos absolutos, os mais beneficiados por essa desoneração são grupos de maior renda, porque eles consomem maiores quantidades de alimentos.

Por outro lado, nota ela, um aumento dos tributos teria forte impacto sobre os mais pobres, que comprometem proporcionalmente uma parte maior da renda com alimentação.

“Se aumentar impostos sobre a cesta básica, isso teria que vir combinado com mais transferência de renda, seja pelo cashback ou por um aumento do Bolsa Família”, defende.

Segundo o deputado Reginaldo Lopes (PT-MG), vice-líder do governo na Câmara, a reoneração de parte dos itens que hoje estão na cesta básica poderiam render de R$ 16 bilhões a R$ 24 bilhões a mais em arrecadação.

“A maneira correta de você diferenciar tributação não é dar alíquota zero para todo mundo”, disse Lopes à reportagem.

“A maneira correta é você onerar quem tem renda e devolver o dinheiro aos mais pobres.”

A ideia enfrenta resistência no setor produtivo e no Congresso. Para o deputado Domingos Sávio (PL-MG), presidente da Frente Parlamentar do Comércio, Serviços e Empreendedorismo (FCS), a proposta é “populista” e provocaria aumento de impostos sobre o consumo de alimentos da classe média.

“Quem vai receber o cashback? Se for devolver para pobres e classe média, dá 90% da população”, disse à reportagem.

O parlamentar tem defendido uma cesta básica ampla.

“O imposto que separa o mais pobre do mais rico é o imposto de renda. Esse, sim, tem que ser um imposto mais alto para quem ganha mais e deve ser zero para quem ganha menos”, disse em evento no final de março, promovido por frentes parlamentares a favor da desoneração ampliada.

“Agora, alimento não deve ter tributação. É assim em boa parte do mundo, e aqui no Brasil é o que nós defendemos.”

Ultraprocessados deveriam ser mais taxados?
Além da controvérsia sobre os itens de “luxo”, o Congresso também enfrenta o debate sobre os ultraprocessados.

O Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) é uma das instituições que defendem que estes produtos fiquem de fora tanto das listas de desconto de imposto como da possibilidade de gerar cashback.

A instituição propõe, inclusive, que esses itens passem a ter uma tributação maior, por meio do “imposto seletivo”.

A taxa é prevista na reforma tributária para produtos considerados negativos para a saúde e meio ambiente, como cigarros e bebidas alcoólicas.

Um levantamento do Idec identificou a presença de ultraprocessados em cestas estaduais.

No caso de São Paulo, por exemplo, produtos como margarina, biscoitos, linguiças, salsichas e mortadelas recebem isenção de ICMS.

Já na Bahia, a lista inclui chás prontos para o consumo, xaropes e refrescos, além de bebidas adoçadas em pó.

Segundo a nutricionista Ana Maya, do Programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Idec, o custo é um fator determinante para as escolhas dos alimentos pela população.

“A gente sabe que hoje a má alimentação é um dos principais fatores de risco para as doenças crônicas não transmissíveis (como câncer, diabetes, e doenças respiratórias), que são as doenças que mais matam no Brasil”, afirma.

A Abras se opões a ideia de sobretaxar os ultraprocessados. Para o setor, produtos com maior grau de industrialização deveriam entrar na lista com desconto de 60% do IVA.

Nesse ponto, Eduardo Fleury concorda com o setor. Ele acredita que sobretaxar ultraprocessados não vai mudar o hábito de consumo e defende ser necessário investir em campanhas educativas.

“Aumentar o imposto não faz a pessoa deixar de comprar (o ultraprocessado), mas ela muda para uma marca mais barata, de pior qualidade”, afirma.

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